quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Dans le pont de suicide - La vie


domingo, 11 de setembro de 2016


Quando Lilouche retornou, trouxe uma mochila repleta de pacotes contendo  doces e salgados. Também tinha na mochila dois pares de meia, duas camisas e  uma pequena toalha de rosto enrolada numa escova de dente, mais  um sabonete com cheiro de lavanda.  Nos braços uma jaqueta junto com um  cachecol. Ainda com o olhar que pendia ora para o chão ora para o nada, Tarik pegou tudo e agradeceu com um curto ```Merci``.

Voltou pelo mesmo caminho que viera minutos antes e seguiu direto para o Parc des Buttes Chaumont. Naquela noite ele tinha para onde ir. Um pouco de comida.  Roupas novas e cheirosas. Além  de algum fio de esperança no futuro. Entrou no parque feito uma sombra atravessando pelo meio da vegetação. Enfiou-se dentro de um  arbusto e mais uma vez deixou escapar um choro incontido, repleto de memórias que ninguém poderá apagar.

Adormeceu enrolado no cachecol que ganhou de Lilouche. Foi o primeiro ato espontâneo de humanidade que Tarik Latiff sentiu em meses.  Acordou esfregando o rosto naquela lã macia que envolvia seu pescoço. Abriu a mochila e conferiu o que tinha para comer. Em uma embalagem estava estampado uma imagem com crianças sorrindo. Tarik lembrou da última vez que viu os irmãos na Croácia. Ele não podia controlar essas memórias, nem mesmo a tristeza. Era um buraco muito grande  na sua existência. Contudo, abriu o pacote e começou a comer. Lambia os dedos depois de cada doce.

O sol da manhã alcançava o seu ponto mais alto naquele dia enquanto  Tarik não tinha sequer saído de dentro daquele arbusto. Parecia estar curtindo o lugar como um quarto de hotel.  Porém, bem no fundo, aquele rapaz solitário tinha esperança de reencontrar Lilouche. Esperou o sol pender a 60 graus no horizonte para finalmente sair da toca feito um animal.

A primeira vista que teve ao sair do arbusto foi um pequeno  grupo de jovens em idade escolar que fumavam maconha. Todos se assustaram com Tarik, e sem alarde, lançaram  o baseado no chão e se dispersaram. O rapaz sequer sabia reconhecer o cheiro ou mesmo o aspecto da cannabis. Embora  o ato de fumar continue muito comum na Síria. Por desprezo aos costumes que trazia do passado, Tarik pegou aquele cigarro e fumou tudo, até a última ponta.

Quando começou a sentir o barato da erva  - sorriu. Mas sorriu tanto que gargalhava. Um mix de vertigem somado a amplificação dos diversos sons do parque o fizeram embarcar na sua primeira onda. Talvez por sorte ou destino, a maré de tristeza começava a se recolher para o mar aberto e profundo. Filho de uma clássica família secular  de Allepo, o rapaz fora finalmente batizado no Ocidente com um baseado de maconha.

Sem dar-se conta começou a comer tudo o que havia na mochila. Seu olhar estava diferente. Não apenas pelas pupilas dilatadas. Era a leveza e serenidade presente naquele rosto depois de meses imersos numa completa escuridão. Quando a onda passou, três horas depois Tarik saiu a procurar por  água. Encontrava nas lixeiras do parque garrafas d´água contendo ainda alguma quantia. Nas  muitas lixeiras do Buttes Chaumont  existem   preciosidades para um refugiado.

Enquanto procurava distraído  por qualquer coisa que pudesse ser útil Tarik ouviu alguém lhe chamar. Virou-se e não viu nada. Era uma voz feminina com sotaque Francês. De repente outra vez seu nome, mas ele olhava em volta de nada via, até que Lilouche muito graciosa saiu detrás de uma árvore trazendo no rosto um sorriso amigável. Perguntou como e onde Tarik tinha passado a noite e disse que estava ali somente para vê-lo porque sabia que ele estaria ali. Tarik disfarçou, mas ficou intrigado e pensou; ``Por que ela sabia que estaria aqui?``

Ainda com gestos e palavras muito contidas aquele jovem formado em História pela Universidade de Allepo retribuiu com um sorriso pálido aos gracejos de Lilouche.

- Trouxe mais comida para você Tarik! Pensei muito na sua situação esta noite. Todos em Paris estão a par dessa terrível situação. Quero que saiba que nem todos concordam com o que o nosso governo está fazendo na Síria. Na verdade eu nem sei os reais motivos dessa guerra. Mas quero lhe pedir perdão por cada desmando da política francesa no seu país!

Pela primeira vez Lilouche despertou o Historiador que havia em Tarik. Primeiro conseguiu arrancar dele algumas palavras, depois uns sorrisos e agora tinha apertado o botão da história e aguçado ainda mais os sentidos daquele rapaz que ficou surpreso com as colocações da jovem parisiense. Pensou um pouco e respondeu;

- Eu sou historiador formado pela Universidade de Allepo. Não consigo compreender os reais motivos que levaram a destruição do meu país e da minha família. Existem muitas peças nesse tabuleiro. E sinceramente compreender não me fará mais leve ou tranquilo porque estudar a guerra é uma coisa.  Sentir o assobio de uma bomba aproximando-se da sua cabeça é totalmente diferente. Lilouche por favor, não se desculpe comigo.

Foi surpreendente a maneira firme e exata com que Tarik proferiu aquelas palavras. Antes muito reservado, agora um arqueólogo da própria história surgindo das cinzas da solidão e do esquecimento através do interesse e dos gestos de Lilouche. Ela prosseguiu  a conversa com uma reflexão sobre a vida e a morte.

- Por acreditar que estava grávida pensei em morrer. Subi no parapeito da ponte do suicídio e quase me atirei. Senti o sabor amargo da morte e fiquei com muito medo. De repente você surge na fila dos suicidas. O que fazia lá? Também queria se matar? Eu pensei estar grávida. Pensei que continha uma outra vida dentro de mim. Sozinha não sabia o que seria de mim. Porém  hoje descobri que não estou grávida e jamais, em hipótese alguma vou pensar em tirar minha própria vida.

Tarik não entendia  os motivos  daquela moça estar lhe confessando suas intimidades. Mesmo assim, sentiu que precisava dar uma resposta. Afinal Lilouche estava muito diferente do dia anterior. Os cabelos soltos, a pele levemente ruborizada e os olhos reluzentes como faróis foram descamando as armaduras do historiador que não se conectava com alguém há muito tempo.

- Lilouche você parece muito aliviada e contente por saber que não estar grávida. Na dúvida você só tinha uma certeza, a solidão. Eu também tenho dúvidas, mas são elas que me mantem vivo. Quando subi até aquela ponte foi para me atirar. Queria morrer. Mas você estava lá, chorando com os olhos arregalados de medo. Isso mudou tudo. Hoje tenho dúvidas quanto aos meus irmãos, minha mãe. Será que eles estão vivos? Eu não tenho o direito de tirar minha vida. Pois eles vivem em mim e eu devo lutar pela vida até o fim, assim estarei horando meu pai  e minha família.

Muito resignada Lilouche respondeu com um sorriso acolhedor. Abriu os braços para Tarik e perguntou – Você quer um abraço? Mesmo sem responder com palavras Tarik deixou escapar com um olhar que era tudo o que mais queria. Lilouche encaixou um abraço tão gosto que Tarik fechou os olhos e praticamente se desmaterializou naquela fluidez tão boa e necessária para aliviar seu sofrimento.

Após retornar da viagem astral que fez nos braços de Lilouche , Tarik estava muito mais vivo e confiante. A ponte do suicídio que poderia ter unido aquelas duas almas na morte – agiu como a ponte para renovação e esperança. Unindo em vida duas pessoas que precisavam um do outro.

A força das experiências do Tarik e a leveza da vida de Lilouche em Paris ao lado da família equilibravam as forças e energias daqueles que viriam a formar  um casal. Ela tinha 22 e ele 24 quando se conheceram em agosto de 2013. Um ano depois Tarik se recuperava das dores de um passado latente enquanto trabalhava numa vinícola nos arredores de Paris. Longe da cidade grande,  vivia no alojamento da empresa. Sempre que podia, duas ou três vezes na semana ia até o Belleville encontrar Lilouche.

Em algumas noites Tarik não conseguia conter a tristeza por não saber da sua família. Por vezes passava as madrugadas inteira na internet procurando por abrigos e locais que recebem refugiados. Mas jamais encontrou um rastro sequer da sua família. Não tinha nem para quem ligar. Pela internet visualizava o que restou da belíssima Allepo, agora irreconhecível. Sem referências.

Um dia  Lilouche tomou coragem e resolveu convidar Tarik para ir até a ponte novamente dois anos depois daquele primeiro encontro. Tarik sentiu vertigem e por alguns instantes estranhou aquela atitude. Mesmo assim aceitou, pois sua confiança em Lilouche era plena. Ao entrarem no  Parc des Buttes Chaumont passou um raído flach back na mente de Tarik que lembrou dos meses que passou dormindo escondido naquele lugar. A diferença é que dessa vez entrou de mãos dadas com sua namorada. Estava vestido com roupas limpas e bem alimentado.

Caminharam até o centro do parque e chegaram às margens do lado. De lá era possível avistar a ponte do suicídio bem no anto de uma colina. Uma sensação de alivio e superação tomou conta de ambos. Lilouche  sorria, fazia brincadeiras, cutucava Tarik na tentativa de arrancar sorrisos do rapaz. Nos caminhos sinuosos que conduzem até a ponte a jovem saiu correndo na frente. Tarik hesitou por alguns instantes e não resistiu. Correu atrás e só alcançou sua namorada bem na entrada da ponte.

A luz do sol brilhava perante Lilouche – que refletia muita paz e amor. Como de costume abriu os braços para Tarik e perguntou. – Você quer um abraço? Dessa vez ele escondeu e gritou eu quero enquanto corria diretamente para os braços de Lilouche.

Ela então colocou as duas mãos no rosto moreno de Tarik e disse je t'aime plus que tout au monde. Tarik estava tão leve e diferente. Sentia-se muito amado e abençoado nos braços de Lilouche. Sabia que tinha levado muito sorte e que muitos refugiados não tiveram o mesmo destino e por isso mesmo sentia muita gratidão por aquela jovem que tanto o amava.

Sentaram no mesmo lugar onde estiveram juntos dois anos antes pela primeira vez. Dessa vez não tinha lágrimas nos olhos de Lilouche nem a escuridão nos olhos de Tarik. Então Lilouche prosseguiu:

- Meu amor – hoje é um dia muito especial. Tenho uma carta de compromisso para a eternidade. Agora não seremos mais só eu e você. Tome, abra e leia!

Naquela altura dos acontecimentos Tarik sentia-se acolhido pelo mundo inteiro. Abriu a carta e leu justamente o que lhe interessava. Era um exame de gravidez, confirmando que Lilouche estava com oito semanas de gravidez.

- Veja meu amor, você percebe que agora tens uma família. Nós somos uma família

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